Fábio Aníbal Goiris*
O dia domingo 30 de abril de 2023, será uma data decisiva para o Paraguai, uma vez que, conforme estabelecido no calendário eleitoral, serão realizadas as eleições gerais para eleger o novo Presidente da República. Haverá um confronto ideológico entre o conservador Partido Colorado (e seu candidato neoliberal Santiago Peña) e uma coalizão de centro-esquerda (representada por Efraín Alegre, do PLRA, Partido Liberal Radical Autêntico). A pergunta-chave é: por que votar em Efraín Alegre, o candidato da concertação?
Desde que Patricio Escobar emergiu como o primeiro presidente do Partido Colorado em 1886, passando pelo governo do general Alfredo Stroessner (1954-1989) e, contando o tempo da ‘transição política’, até 2023, chegou-se à soma de mais de 80 anos. Durante todo esse longo período o Partido Colorado esteve no poder. A alternância, ou seja, a queda política do Partido Colorado foi verificada apenas em três momentos. O primeiro, em 1904, quando o Partido Liberal impôs um ‘golpe palaciano’, ficando no poder até 1935; o segundo quando o Coronel Rafael Franco, em 1936, deu outro golpe de Estado, em nome do Partido Revolucionário Febrerista (Franco permaneceu apenas 1 ano no poder) e o terceiro quando, em 2008, Fernando Lugo, do partido Frente Guasú, assumiu democraticamente o poder pelo voto popular. Não obstante, em 2012, Lugo sofreu um impeachment, forjado pela direita (muito parecido ao caso da Dilma Rousseff), antes de concluir o seu mandato. O Partido Colorado voltou a governar.
Isso significa que o poder político no Paraguai tem se mantido sobretudo por efeito do uso da força e de uma cultura autoritária, distante do pensamento republicano, como ocorre na maioria dos outros países. Assim, as mudanças democráticas não fazem parte da experiência cotidiana deste país. O resultado profundamente negativo desse longo processo de 80 anos (período dominado por um partido hegemônico e autoritário, o Partido Colorado), tem sido a falta de secularização da política e da sociologia. Em consequência, surge um país mergulhado no atraso, não só econômico, mas também cultural e social, que se manifesta sobretudo na pobreza e na desigualdade social. O Paraguai, em 2020, segundo dados do FMI, continuou aparecendo entre os 10 países mais pobres das Américas, junto com Haiti, Nicarágua, Venezuela e Bolívia. Esse processo adverso pode ser resumido no fato de que: os 10% mais ricos da população paraguaia recebem 40% da renda total do país e os 40% mais pobres recebem apenas 10% da renda. Aqui reside a necessidade imperiosa da alternância política.
Cabe expressar que o câmbio político não só implica em mudanças no poder de candidatos, pessoas ou partidos políticos, mas também é um processo que, longe de trazer caos ou insegurança, permite reforçar a confiança e a tranquilidade no funcionamento das instituições do Estado, da banca privada e da democracia representativa. A alternância não deve ser temida. É imperativo renunciar à cultura que receia ou abomina a mudança política, pois, trata-se de um desenho institucional que procura consolidar a igualdade política e, portanto, visa também reduzir as diferenças económicas e sociais entre os grupos que compõem a sociedade.
É preciso ressaltar que a discussão sobre democracia e alternância política não entra no rol de temas estranhos e nem sequer se trata de algo novo ou moderno, pois, a democracia (ou o desejo da democracia) é uma aposta ética que vem sendo utilizada desde o século V, antes de Cristo, na Grécia Antiga, a partir das palavras “demos” (povo, população) e “kratos” (governo, poder, autoridade), ou seja, um governo do povo. Nesse sentido, na história do Paraguai, o período da Primeira República (1811-1865), do Dr. Francia e dos dois López, Carlos Antônio e Francisco Solano, representa o legado inspirador de uma política de viés claramente democrático e de caráter anti-imperialista, que marca a existência de um Estado popular, voltado para a defesa das classes subalternas. Da mesma forma, no Paraguai contemporâneo, lutar por eleições livres e limpas e por um manejo mais democrático dos recursos públicos, são os desejos das vozes ofuscadas por décadas.
Uma das questões mais importantes para que se defenda a mudança política é a desigualdade na posse da terra. No Paraguai, no setor rural, em torno de 1% da população concentra 66% das terras. Enquanto que 30 % dessa população não possui terra alguma. O país apresenta a distribuição de terras mais desigual do mundo, com uma pequena elite latifundiária (repleta de estrangeiros), que concentra quase toda a área agrícola e pecuária, enquanto a grande maioria das famílias camponesas e indígenas carece de terras suficientes para sobreviver. Além disso, há um aumento dos processos de criminalização que resultam em despejos forçados e repressão de milhares de famílias indígenas e de trabalhadores rurais. O advogado Efraín Alegre, candidato da concertação, publicou em 2008 o livro ‘A terra no Paraguai (1947-2007)‘, que analisa os últimos 60 anos da distribuição de terras públicas no país. Estas são algumas das razões pelas quais é de interesse nacional votar na coalizão. Diversos setores do país se opõem fortemente à concertação política. Em primeiro lugar os pertencentes ao direitista Partido Colorado. Estes têm o poder nas mãos e, como é evidente, pretendem dar continuidade ao antigo esquema liberal-oligárquico e autoritário-prebendário. Em segundo lugar, alguns membros do próprio PLRA, opõem-se à mudança, como Martin Burt, Hugo Fleitas, Blas Llano, Eduardo Nakayama e Dionisio Amarilla. Estes, não possuem o apoio popular de mais de 1.000.000 de votos que já teria Efraín Alegre. Diante disso, denunciam supostas “fraudes eleitorais” nas eleições internas e desqualificam impiedosamente o candidato do seu próprio partido.
O mesmo fenômeno se repete com alguns políticos de oposição ao Partido Colorado, que pertencem aos novos partidos (como Euclides Acevedo, Payo Cubas, Luis Chilavert). Estes candidatos à Presidência da República dizem representar uma alternativa válida para a mudança, sob a forma de terceira via. No entanto, carecem da necessária pujança eleitoral. Assim, são candidatos demagogos e sem propósitos republicanos. Esses candidatos da terceira via (muito parecidos aos casos de Ciro Gomes, Simone Tebet e Soraya Thronicke, no Brasil), não desistem de suas candidaturas e, com isso, não levam nenhum perigo, nem eleitoral e nem ideológico, para o gigantesco e poderoso Partido Colorado. Se houvesse, no Paraguai, a eleição em segundo turno, como no Brasil, facilitaria a ocorrência de alianças e coligações em favor da concertação democrática. A ausência do segundo turno ou balotaje é uma antiga armadilha das ditaduras e da direita conservadora.
É extremamente importante destacar que em geral as pessoas de pensamento conservador se opõem às mudanças políticas e, muito particularmente, a classe média paraguaia, que, em sua maioria, não concorda com as ideias progressistas, tipicamente atreladas à alternância política. Assim, esta classe média inserida num processo dominado não só pela cultura autoritária e reacionária, mas também pela alienação política e econômica, se desloca rapidamente em direção à direita conservadora. Mesmo com este quadro adverso para a democracia, o médico e escritor Alfredo Boccia Paz escreveu um notável artigo intitulado Efraín tem chances? onde ele responde positivamente à sua própria pergunta, dizendo que Efraín tem a vantagem de, nas eleições, tornar-se um camaleão e somar muitos mais votos do que normalmente lhe são creditados. Supõe-se então que ele teria eleitores ocultos dentro da classe média do próprio Partido Colorado. É preciso lembrar que nas eleições de 2018 o conservador Mario Abdo Benítez do Partido Colorado venceu por apenas 3,3 por cento de vantagem sobre o líder da oposição Efraín Alegre.
Na filosofia política são usados termos contrastantes como aparência–essência e doxa–episteme. Isso significa que a candidatura de Efraín Alegre sofre os efeitos negativos de uma interpretação onde predomina a aparência e a doxa (a crença vulgar ou mera opinião, que inclui as notícias falsas ou fake news), em detrimento da essência e da episteme (o conhecimento justificado como verdade). O candidato Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, passou por processo semelhante e, felizmente, conseguiu se reabilitar e se tornar presidente. Assim, quando se diz, em forma de denúncia, que Efraín Alegre desviou recursos de seu próprio partido, o PLRA, bem como de empresas estatais; que sua vice-presidente Soledad Núñez responda às ordens do colorado Horácio Cartes, estar-se-ia apenas no campo da aparência e da doxa, já que a própria justiça paraguaia não verificou com segurança essas acusações (o comum em um processo judicial é que ele termine com a publicação de sentença – leia-se episteme – que declare procedente ou improcedente a ação movida). Parece estar surgindo no Paraguai uma parcela da classe média que já se mostra favorável à essência, ou seja, à alternância.
Pode-se concluir que a mudança de poder político é uma alternativa que tem um valor intrínseco extraordinário para a vida das pessoas, sobretudo quando é realizada de forma pacífica. A alternância de poder é uma configuração ou um diploma eleitoral que visa superar a desconexão entre os ideais e valores dos cidadãos em geral (que se supõem sejam democráticos e republicanos), e os ideais e valores de um governo conservador da atualidade que continua a se espelhar em décadas de atraso ético, político e econômico.
*O autor é cientista político, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); graduado em direito; Mestre em Ciência Política pela UFRGS; Pós-graduado em Sociologia Política pela Universidade de Londres, Inglaterra e autor de diversos livros como Paraguai: Ciclos Adversos e Cultura Política, Servilibro, Assunção, 2004.