Fabio Anibal Goiris
O linguista britânico Norman Fairclough, professor emérito da Universidade de Lancaster, no seu livro “Discurso e mudança social” (2016), cunhou a palavra comoditização para se referir não à tradicional produção de mercadorias (commodities), mas a certas formas particulares de produção, distribuição e consumo. O autor cita os cursos de língua inglesa. Não há mais a preocupação pelo ensino essencialmente cultural e científico da língua inglesa, mas pelo seu uso utilitário (no sentido de visar a produção de valor agregado e lucro dentro do sistema de produção).
O mesmo fenómeno parece estar ocorrendo com a ideologia política. No passado, era possível ver as pessoas chegarem às cabines de votação com a mais sincera convicção ideológica de votar a favor dos princípios democráticos que, pelo menos em tese, norteavam o partido e o seu candidato. Deste cenário surgiram importantes correntes e movimentos ideológicos: o getulismo, o ademarismo, o janismo, o malufismo, o brizolismo e especialmente o lulismo (ver “Os sentidos do Lulismo”, de André Singer, publicado pela Companhia das Letras, 2012). O único movimento que permanece ideologicamente vivo, pelo menos até o momento, é o lulismo, entendido como de esquerda ou de centro esquerda. O lulismo, com seu pragmatismo sindical, vanguardismo político e realinhamento eleitoral, conseguiu alterar (inclusive a seu favor) as relações entre democracia e capitalismo no Brasil.
A ideologia é um termo de vários sentidos. Por um lado, pode ser apenas o estudo de um conjunto de ideias(Destutt de Tracy), por outro, pode transformar-se numaterrível e sub-reptícia hegemonia que visa manipular, dominar e controlar as pessoas e a própria realidade natural e social (Karl Marx). Hoje, a ideologia, particularmente aquela que representa as convicções ideológicas dos eleitores, vem perdendo espaço para o neologismo comoditização (ou mercantilização) da política. A luta desenfreada pelo poder político está cada vez mais valorizada comparativamente à desvalorização da ideologia política. Assim, as convicções ideológicas foram sendo substituídas pelas coligações partidárias que não obedecem a nenhum critério ideológico. Agremiações políticas que defendem programas de esquerda se coligamabertamente a partidos com programas partidários de direita. A antiga verticalização era uma tentativa jurídica que obrigava a aliança de partidos com identidades ideológicas semelhantes. Porém, foi mais uma ideia que não foi adiante, inclusive porque a Emenda Constitucional, EC 52/2006, desobrigou a vinculação das alianças estaduais às coligações partidárias nacionais.
Um avanço eleitoral e democrático ocorreu com a introdução das federações (Lei nº 14.208/2021) que normatiza a reunião de partidos, com duração de 4 anos, evitando a extinção de partidos menores e barrando, em tese, as alianças fisiológicas. São exemplos de federações: Federação Brasil da Esperança (PT, PCdoB e PV), Federação (PSDB– Cidadania) e Federação (PSOL–Rede).Não obstante, a finalidade da união de partidos, mesmo dentro das federações, continua sendo a mesma: traz vantagens para as campanhas eleitorais, como mais tempo de televisão e a possibilidade de receber verbas dos outros partidos integrantes. Nada mais do que isto. No fim das contas, as ideologias políticas, em especial aquelas que defendem os direitos humanos, continuam praticamente excluídas do processo. Assim, percebendo a ausência dasideologias (em especial as ideologias progressistas), o eleitor é compelido a pensar que todos os partidos políticos (e seu líderes) procuram unicamente um objetivo: obter cargos públicos, desde os eletivos até os de nomeação, de confiança e até os de nepotismo (como os Nepo babies).
É possível entender que os confrontos e polarizações, que tem por base a comoditização e a mercantilização da política, conseguem favorecer muito mais as ideologias dedireita (como o próprio bolsonarismo), uma vez que são correntes que têm usado e abusado do discurso autoritárioe populista de direita (leia-se fake news). Além disso, oconservadorismo político se conecta vivamente às religiões pentecostais (ramificações do evangelismo e adeptos da teologia da prosperidade), visando formar uma frente de direita. Esta é a origem da Bancada BBB no Congresso Nacional: bancada da bala, do boi e da bíblia.
É preciso lembrar que a extrema direita (ou ultradireita) a cada dia tenta encontrar o seu espaço no espectro da direita tradicional. A deputada francesa Marine Le Pen, do partido Reunião Nacional (agremiação de perfil racista e xenófoba), chegou a surfar nessa onda. Este tipo de ideologia de direita é a que vem sendo combatida permanentemente por ideologias progressistas e de resistência e pelas filosofias humanistas (que defendem os direitos humanos e a democracia). O escritor Bernardo Carvalho, usando uma metáfora da economia (valor nominal x valor real), diz que o grande perigo do mundo contemporâneo é a chamada normalização da extrema direita, em que esta ideia é vendida na mídia, através do conservadorismo, pelo seu valor nominal (sem inflação, sem perigo), escondendo, entretanto, o seu valor real(inflacionado, atroz e ameaçante).
O século 21 vem mostrando que as posturas e ideologias de esquerda passaram a assumir um papel de relevância (e de resistência) na sua luta a favor da mudança social. Cabe enfatizar que mudanças sociais ocorrem graças aos esforços coletivos de pessoas que atuam em movimentos sociais para mudar a política social ou a própria estrutura do governo. Um exemplo recente são os resultados das eleições legislativas na França onde se verificou a vitória da coalizão Nouveau Front Populaire (Nova Frente Popular, NFP), formada pelos quatro maiores partidos de esquerda e centro-esquerda no país. Com estes resultados eleitorais evitou-se a consolidação da ultradireita na França. O papel da ideologia de esquerda é justamente defender alguns valores democráticos que a ideologia da ultradireita recusaou abandona.
Nesse contexto, recentemente, Wilson Gomespublicou um artigo intitulado “Normalizar a ultradireita é inevitável”, onde o professor faz uma defesa da extrema direita como sendo uma corrente democraticamente legitima e a luta contra esse movimento, diz o autor,deveria ser dada pelo voto, nas urnas. Para o professor, a extrema direita veio para ficar. Ao mesmo tempo, o autor estigmatiza aqueles que porventura se refiram à direita como “fascismo”.
Contrariamente, em excelente réplica, o professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, escreveu o artigo “Extrema direita já foi normatizada pelos políticos e pelos formadores de opinião”, no qual denuncia a gravidade do fato de (os adeptos do conservadorismo e da direita) recusarem ou desconsiderarem a existência de um movimento catastrófico global (promovido pelaultradireita) de essência autoritária e representando uma espécie de esgotamento terminal das ilusões da democracia.
A ‘normalização da extrema direita’ nunca foi realizada pelos eleitores (pelos cidadãos comuns, especialmente aqueles das classes subalternas). O que se verifica é que amplos setores da classe média conservadora (em conluio com a classe burguesa)representam o núcleo central da ultradireita. Não se pode negar, entretanto, que um setor das classes proletárias tem votado em candidatos da direita e da extrema direita. Aalienação do homem, fenômeno inerente ao capitalismo, é a que estaria genealogicamente incitando esses votos na ultradireita.
A ideologia burguesa e a alienação (na concepção de Marx e Gramsci) produzem a ‘mistificação da realidade’ e representam a influência (hegemônica) exercida (por um grupo ou classe social) visando moldar a cultura e a identidade de uma sociedade. A alienação já foi referida por Marx como o estranhamento do homem em relação a si mesmo e aos outros indivíduos. Na alienação a pessoa perde a real noção de sua identidade e de seu valor como indivíduo. Marx argumenta que, sem alienação, os trabalhadores teriam controle sobre o processo de produção e o próprio produto, impossibilitando a apropriação do valor excedente (mais valia) pelo capitalista. A alienação (ou falsa consciência), por um lado, e a naturalização (por meio da hegemonia da classe dominante) das desigualdades sociais, por outro, têm como resultado os votos para a extrema direita.
Vladimir Safatle concluiu o seu artigo dizendo: “Pois, aos que pregam a normalização da extrema direita eu diria que há tempo ela já esteve normalizada. Não pelos eleitores [das classes proletárias], mas pelos políticos [de direita e de extrema direita] e formadores de opinião liberais (jornalistas, educadores, professores universitários, sociólogos, politólogos e intelectuais, do espectro direitista). Há uma aliança objetiva entre os dois grupos [políticos de direita e formadores de opinião]”.
Cabe apontar para o fato de que a ‘normalização da extrema direita’ já faz parte da agenda do debate político e isto é extremamente ameaçador, especialmente para os grupos mais vulneráveis: imigrantes, pobres, mulheres, negros, indígenas e a própria esquerda ideológica. Neste contexto, é sempre positiva para a democracia e os direitos humanos a presença vigilante das ideologias, particularmente aquelas progressistas e de resistência. O pensador argentino Ernesto Sabato (1911-2011), em sua obra La Resistencia (Editora Seix Barral, Buenos Aires, 2000), convoca os cidadãos a se posicionaremcriticamente diante das ideologias hegemônicas e reacionárias, encarnando uma consciência crítica e humanizada.
No Brasil, já houve tempo em que a ideologia política exercia um papel democrático importante. Direita e esquerda já se digladiavam desde o império. Abolicionistas e republicanos contra a monarquia. Integralistas contra comunistas e ambos contra o Estado Novo. Carlos Lacerda e a UDN contra Vargas, Juscelino Kubistchek e Jango. Arena versus MDB, e, por fim, na Nova República, desde 1985, PSDB, de centro direita, e PT, de esquerda. Hoje, contrariamente, o aspirante a cargo eletivo não é mais identificado pela sua ideologia. Ocandidato coloca apenas o seu nome de batismo e a sigla do seu partido. Neste quadro, dois prefeitos candidatos à reeleição, João Campos (PSB) e Eduardo Paes (PSD), respectivamente prefeitos do Recife e do Rio de Janeiro, disparam nas pesquisas sem que tenham posto suas posições ideológicas no tabuleiro.
Pode-se concluir que a coerção, a exclusão, a violência e a desigualdade podem fazer parte de qualquer sociedade civil (na bela e civilizada Itália nasceu o fascismo e a grande República de Weimar deu origem e sustentou o nazismo). Esses processos ideológicos reacionários devem ser resistidos e contestados em nome de valores aderentes à democracia e aos direitos humanos.
O autor é professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Graduado em Direito pelo Cescage. Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realizou curso de Sociologia Política na Universidade de Londres, Inglaterra. Escreveu diversos livros como “Estado e política: a história de Ponta Grossa” (2015).